O Quadro Negro

@IsaacGaitano
4 min readJun 2, 2020
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“Não basta não ser racista, precisamos ser anti racistas” Angela Davis

Descrições de diferenças culturais, raciais e físicas que denotam “Outros” mas permanecem imunes às categorias de valor ou status são difíceis de encontrar. Muitas, senão a maioria, das descrições textuais e texturas de raça oscilam entre dissimuladas, nuançadas e pseudo-cientificamente “provadas”. E todas elas possuem justificativas e pretensões de certeza destinadas a sustentar a dominação.

Logo que cheguei nas terras amazônicas, me falaram que pelo menos duas coisas, eu deveria aprender: caçar e navegar. Um jovem Macuxi da comunidade Uruka me perguntou se conhecia algumas estratégias de sobrevivência na natureza. Abertamente, respondi que não.

E acabou me ensinando as táticas como distração/sacrifício para proteger o ninho; caça em bando/busca improvisada por comida e pescar na lua da noite. Que posso usar timbó para deixar os peixes bêbados. Tal falava com tanta propriedade, que não deixava dúvida de que, verdadeiramente, o índio é sempre índio e muito mais. E a causa indígenas não é de pedir favores mas de respeitar e promover o seu o jeito ser.

Aqui na Amazônia me sinto em casa. Mas preciso me amazonizar a mais. Consigo sentir a semelhança religiosa e histórica entre nós negros e indígenas. Sobretudo no memorial ancestral e no esforço de mudar as narrativas impostas que muitas vezes são unilaterais e exclusiva. Decolonizar os pensamentos e práticas rotineiros e monótonas. A diversidade é um dom, essa que fez a humanidade evoluir e a fé crescer. Com razão, ser cristão é sinônimo de viver a universalidade. Precisamos aumentar a diversidade na política e na igreja.

Falando sobre os negros, pessoalmente fiquei e estou muito indignado danado com a morte do George Floyd, João Pedro no Rio, o caso da Marielle Franco e tantos mais. A violência e o racismo estruturada continuam revelando sua face brutal. Ficar em silêncio é ser cúmplice, isso é óbvio.

Por isso, grito alto #Vidasnegrasimportam #ResistenciaIndigena em qualquer lugar do mundo. E a perplexidade diante dos protestos é o sintoma do descaso e da negligência com um tema que sempre foi fundamental.

Eu sei que ficar indignado danado não basta, por isso é fundamental traduzi-a em atos de lutar. Como também não basta não ser racista, precisamos ser anti racista e contra tudo a que o racismo dá suporte e sentido. Infelizmente, há violência simbólica e racismo mascarado, até dentro de algumas igrejas e nossas instituições religiosas. Basta lembrar, as críticas e insultos na samba enredo da Mangueira para o carnaval de 2020. Basta pensar, um certo medo que sai da ala conservadora/bolsonarista católica, que se assemelha com fanáticos evangélicos e não quer ouvir nada sobre a liturgia negra ou rito indígenas, enfim uma liturgia inculturada.

Em outras palavras, Não basta se afirmar anti racistas (boca para fora), é preciso colocar seu privilégio a favor da luta. Vi as pessoas brancas se aliando a manifestação #BlackLivesMatter, no caso do George Floyd essas são reflexo de todas as discussões históricas que geraram uma consciência anti-racista. São pessoas que estão se colocando em risco e utilizando seus privilégios para somar a manifestações. E esse é o mínimo que qualquer branco brasileiro precisa entender para se tornar um aliado, pode até se sentir que está no lugar errado ou correndo contra uma corrente que quer te silenciar. Mas é nesse exato momento que vai enxergar que ainda carregam o escudo imaginário da sua cor, dos traços europeus e da sua estrutura social que permite que você escolha estar nessa posição.

O problema é que aqui no Brasil a maioria das pessoas criou um mito tal de miscigenação de que não existe racismo. Ou quando admitido, é relativizado, dizendo que nos Estados Unidos é muito pior. Juntos precisamos lutar por um mundo melhor e isso não fazer um “favor” mas sim um direito existencial de ser gente. E por favor, não caia nessa armadilha de que é difícil saber quem é negro no Brasil.

Controlar o imaginário, as crenças e colocar em dúvida a própria auto-declaração negra/indígena é o que permitiu atual realidade, uma maioria da população que é a minoria sem representação nos espaços de poder. Basta ler a eugenia do médico e senhor de escravos do sul dos Estados Unidos Samuel Cartwright para entender até onde a ciência, quando não a política e religião, é capaz de ir para documentar a necessidade de controlar o Outro.

Eu nasci e cresci na Tanzânia, África mas só me enxerguei como negro NO Brasil. Na África é difícil você ter a consciência do debate racial porque a população branca é quase inexistente salvo algumas exceções. Aqui estou como negro-cristão trabalhando junto com o povo indígena. Como Jesus, na contramão dos interesses dos poderosos de seu tempo, que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10), o cristão, é alguém pessoalmente empenhado, e de mãos dadas com todas os movimentos sociais, na construção de outra sociedade possível ou, fundamentalmente, ele não é cristão mesmo sendo batizado e consagrado.

O povo originário pode nos ensinar resgatar o que nos faz humano; apenas humanos-como por exemplo: o poder da afetividade, a comunhão fraterna que eles tem com seres bióticos (plantas, animais) e abióticos (sol, água e ar), a consolação como modo de humanização, a santidade horizontal e do bem querer. Mas antes deve nós armar com a ciência essencial de sermos húmus.

A causa indígena/negra é de todos nós. Eis é o nosso credo e eco.

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